05/12/2009

Artigo: Favela de Pedra

Olá amigos, tudo bem com vocês?


Prestigiem o que escrevi sobre minhas experiências com aulas de artes visuais em escola da Cidade Tiradentes. “Favela de Pedra” é uma descrição visual de uma viagem a um dos bairros mais paradoxais de São Paulo. Inicialmente o texto foi publicado na área de Debate Acadêmico da UNESP e selecionado pelo crítico Oscar D’Ambrósio, porém, ao revisar recentemente, conferi que o mesmo não está mais disponível lá, por este motivo, deixo-o aqui na íntegra.





Favela de Pedra
SOUZA, Marcio Rogério Ferreira de[*]


O homem se faz perceber no mundo a partir de suas particularidades resultantes de sua consciência como um indivíduo, uma célula componente da comunidade. Sua individualidade se revela através de suas características construídas durante a sua vivencia em sociedade e esta se ajusta a um processo de troca entre os indivíduos, (células), e o produto da troca é o fruto de suas peculiaridades.
Quanto mais o indivíduo é capaz de extroverter sua identidade, mais ele tem a oferecer na rede de troca entre os indivíduos.
Esta consciência de identidade está presente na forma como o homem se percebe e se coloca na sociedade, seja no seu jeito de falar, de vestir, de se comportar, de afirmar suas opiniões, de se relacionar com o outro e os outros. Entretanto, esta consciência de individualidade também se apresenta nas “marcas” deixadas como vestígios de sua presença (estive ou estou aqui). A consciência de identidade individual culmina na necessidade de afirmação de sua presença como um ser diferente e único.
Por outro lado, a massificação da sociedade aconteceu no mesmo ritmo em que os valores individuais foram destruídos - a construção de uma sociedade de iguais, a reunião de cópias de um modelo apresentado. Neste caso a relação de troca entre os indivíduos torna-se desigual, visto que os mesmos não podem oferecer um produto da individualidade e sim uma resposta esperada ao modelo proposto.
O Lar, ou morada, é o local onde o indivíduo vive sua individualidade na forma de privacidade, este local que, quase sempre, significa para o acolhido o abrigo, o seu espaço seguro e onde tem liberdade para deixar sua “marca”, é onde o indivíduo se sente único, dono do seu próprio espaço.
Esta expressão de identidade, materializada na imagem do lar, tem um importante papel de aproximar o indivíduo de si mesmo e não deixa-lo totalmente a mercê da alienação provocada pela massificação. O lar é uma referência, entre outras, da individualidade, aflora no indivíduo sua consciência de diferente e único.
Como é a sua casa? Onde você mora?
Se estas perguntas forem feitas a um grupo de indivíduos as respostas serão tão diferentes quanto o número deles: Um poderia dizer que sua casa tem um portão velho de madeira e que faz um bom tempo que não pinta; O outro que mora em um sobrado estilo colonial com um coqueiro na frente; O outro em uma casa pequena sem revestimento.
O fulano mora naquela casa sem muro com uma carroça na frente! Para citar mais um exemplo.
Entretanto, a morada, também, pode estar numa condição de massificada e assim o indivíduo perde parte da referencia de sua individualidade que ela poderia proporcionar. Neste caso a casa do portão velho de madeira não existe, da mesma forma o sobrado em estilo colonial. O que existe é a mesma descrição de casa para todos. Fica difícil perceber o fulano pela carroça que tem em frente a sua casa, os fulanos moram em casas iguais, não se percebe o fulano pela sua morada característica.
Quando fomos pela primeira vez, em 2003, na Cidade Tiradentes, depois de termos assinado um contrato com a Prefeitura da Cidade de São Paulo, para ministrarmos aulas de Arte em escolas deste bairro, tivemos a sensação de estar numa imensa favela de pedra. A cada esquina que virávamos era como se estivéssemos repetindo o mesmo percurso da esquina anterior, com construções totalmente funcionais, onde nos pareceu não ter existido preocupações com o “bem-estar” quando foram projetadas.
No entanto, o que mais nos chamou a atenção foi a massificação arquitetônica, e a questão que surgiu é paradoxal: A mesma identidade para uma comunidade de diferentes indivíduos? Concluímos que é quase impossível para a grande parte dos moradores deste bairro afirmar sua identidade tendo como referência sua casa. Afinal, são centenas de prédios iguais, onde as casas são iguais (Não estamos considerando aqui a parte interna).
Mesmo sabendo que não poderíamos obter a resposta “minha casa tem um portão velho de madeira”, perguntamos a alguns alunos sobre sua casa e percebemos nas respostas que estes procuram uma referência para responder, no entanto, estas referências permanecem coletivas: “Moro num prédio que fica em frente ao ponto da lotação”. E esta resposta pode ser a de todos os moradores daquele prédio.
A escola onde demos aulas por um maior período de tempo foi a E.M.E.F. José Augusto César Salgado. Durante o tempo que permanecemos, mais precisamente entre 2003 e 2004, notamos que, através da Arte, alguns conseguem expor sua individualidade, não precisamos de muito tempo para notar a vocação que esta comunidade tem para revelar artistas.
Artistas como o cineasta Tio Pac, o músico Endrigo, cartunistas, atores, dançarinos, para todos os suportes surgem talentos. Entidades e associações são organizadas e este leque de ações públicas é uma reação da comunidade para minimizar o efeito da massificação. É a luta pela sobrevivência e pela sobrevivência da identidade que forma o fio que os une.
Internamente, a aparência dos lares são realizações dos indivíduos, o espaço é pequeno e, cotidianamente, as roupas são penduradas nas janelas para secarem. Quem observa de fora, vê uma imagem fantástica, é como se cada família levantasse suas bandeiras e marcasse seu território. É o espetáculo dos estandartes coloridos sobre a parede do barraco de pedra desbotado e descascando.
Em cada roupa na janela, vê-se uma identidade, as diferenças afloram. O indivíduo deixa seu bairro para trabalhar ou estudar durante o dia e suspeita que sua morada é a única que tem uma camiseta vermelha com listras amarela na janela, mesmo que só por este dia, sente que não precisa do portão velho de madeira.




[*] Márcio Rogério Ferreira de Souza é pós-graduado em Artes pela Unesp.

2006© Marcio R. Gotland
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