Prestigiem o que escrevi sobre minhas experiências com aulas de artes visuais em escola da Cidade Tiradentes. “Favela de Pedra” é uma descrição visual de uma viagem a um dos bairros mais paradoxais de São Paulo. Inicialmente o texto foi publicado na área de Debate Acadêmico da UNESP e selecionado pelo crítico Oscar D’Ambrósio, porém, ao revisar recentemente, conferi que o mesmo não está mais disponível lá, por este motivo, deixo-o aqui na íntegra.
Favela de Pedra
SOUZA, Marcio Rogério Ferreira de[*]
O
homem se faz perceber no mundo a partir de suas particularidades resultantes de
sua consciência como um indivíduo, uma célula componente da comunidade. Sua
individualidade se revela através de suas características construídas durante a
sua vivencia em sociedade e esta se ajusta a um processo de troca entre os
indivíduos, (células), e o produto da troca é o fruto de suas peculiaridades.
Quanto
mais o indivíduo é capaz de extroverter sua identidade, mais ele tem a oferecer
na rede de troca entre os indivíduos.
Esta
consciência de identidade está presente na forma como o homem se percebe e se
coloca na sociedade, seja no seu jeito de falar, de vestir, de se comportar, de
afirmar suas opiniões, de se relacionar com o outro e os outros. Entretanto,
esta consciência de individualidade também se apresenta nas “marcas” deixadas
como vestígios de sua presença (estive ou estou aqui). A consciência de
identidade individual culmina na necessidade de afirmação de sua presença como
um ser diferente e único.
Por
outro lado, a massificação da sociedade aconteceu no mesmo ritmo em que os
valores individuais foram destruídos - a construção de uma sociedade de iguais,
a reunião de cópias de um modelo apresentado. Neste caso a relação de troca entre
os indivíduos torna-se desigual, visto que os mesmos não podem oferecer um
produto da individualidade e sim uma resposta esperada ao modelo proposto.
O
Lar, ou morada, é o local onde o indivíduo vive sua individualidade na forma de
privacidade, este local que, quase sempre, significa para o acolhido o abrigo,
o seu espaço seguro e onde tem liberdade para deixar sua “marca”, é onde o
indivíduo se sente único, dono do seu próprio espaço.
Esta
expressão de identidade, materializada na imagem do lar, tem um importante
papel de aproximar o indivíduo de si mesmo e não deixa-lo totalmente a mercê da
alienação provocada pela massificação. O lar é uma referência, entre outras, da
individualidade, aflora no indivíduo sua consciência de diferente e único.
Como
é a sua casa? Onde você mora?
Se
estas perguntas forem feitas a um grupo de indivíduos as respostas serão tão
diferentes quanto o número deles: Um poderia dizer que sua casa tem um portão
velho de madeira e que faz um bom tempo que não pinta; O outro que mora em um
sobrado estilo colonial com um coqueiro na frente; O outro em uma casa pequena
sem revestimento.
O
fulano mora naquela casa sem muro com uma carroça na frente! Para citar mais um
exemplo.
Entretanto,
a morada, também, pode estar numa condição de massificada e assim o indivíduo
perde parte da referencia de sua individualidade que ela poderia proporcionar.
Neste caso a casa do portão velho de madeira não existe, da mesma forma o
sobrado em estilo colonial. O que existe é a mesma descrição de casa para
todos. Fica difícil perceber o fulano pela carroça que tem em frente a sua
casa, os fulanos moram em casas iguais, não se percebe o fulano pela sua morada
característica.
Quando
fomos pela primeira vez, em 2003, na Cidade Tiradentes, depois de termos
assinado um contrato com a Prefeitura da Cidade de São Paulo, para ministrarmos
aulas de Arte em escolas deste bairro, tivemos a sensação de estar numa imensa
favela de pedra. A cada esquina que virávamos era como se estivéssemos
repetindo o mesmo percurso da esquina anterior, com construções totalmente
funcionais, onde nos pareceu não ter existido preocupações com o “bem-estar”
quando foram projetadas.
No
entanto, o que mais nos chamou a atenção foi a massificação arquitetônica, e a
questão que surgiu é paradoxal: A mesma identidade para uma comunidade de
diferentes indivíduos? Concluímos que é quase impossível para a grande parte
dos moradores deste bairro afirmar sua identidade tendo como referência sua
casa. Afinal, são centenas de prédios iguais, onde as casas são iguais (Não
estamos considerando aqui a parte interna).
Mesmo
sabendo que não poderíamos obter a resposta “minha casa tem um portão velho de
madeira”, perguntamos a alguns alunos sobre sua casa e percebemos nas respostas
que estes procuram uma referência para responder, no entanto, estas referências
permanecem coletivas: “Moro num prédio que fica em frente ao ponto da lotação”.
E esta resposta pode ser a de todos os moradores daquele prédio.
A
escola onde demos aulas por um maior período de tempo foi a E.M.E.F. José
Augusto César Salgado. Durante o tempo que permanecemos, mais precisamente
entre 2003 e 2004, notamos que, através da Arte, alguns conseguem expor sua
individualidade, não precisamos de muito tempo para notar a vocação que esta
comunidade tem para revelar artistas.
Artistas
como o cineasta Tio Pac, o músico Endrigo, cartunistas, atores, dançarinos,
para todos os suportes surgem talentos. Entidades e associações são organizadas
e este leque de ações públicas é uma reação da comunidade para minimizar o
efeito da massificação. É a luta pela sobrevivência e pela sobrevivência da
identidade que forma o fio que os une.
Internamente,
a aparência dos lares são realizações dos indivíduos, o espaço é pequeno e,
cotidianamente, as roupas são penduradas nas janelas para secarem. Quem observa
de fora, vê uma imagem fantástica, é como se cada família levantasse suas
bandeiras e marcasse seu território. É o espetáculo dos estandartes coloridos
sobre a parede do barraco de pedra desbotado e descascando.
Em
cada roupa na janela, vê-se uma identidade, as diferenças afloram. O indivíduo
deixa seu bairro para trabalhar ou estudar durante o dia e suspeita que sua
morada é a única que tem uma camiseta vermelha com listras amarela na janela,
mesmo que só por este dia, sente que não precisa do portão velho de madeira.
2006© Marcio R. Gotland