E era toda a terra duma mesma língua, e duma mesma fala;
E aconteceu que, partindo eles do Oriente,
acharam um vale na terra de Sinear, e habitaram ali.
E disseram uns aos outros: Eia, façamos tijolos, e queimemo-los bem.
E foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume por cal.
E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus,
E façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra.
Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam;
E disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua, e isto é o que começam a fazer;
e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer.
Eia, desçamos, e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro.
Assim o Senhor espalhou dali sobre a face de toda a terra, e cessaram de edificar a cidade.
A Babel, cidade onde a grande torre foi concebida como projeto e em parte edificada tem como primordial objetivo explicar a diversidade linguística dos povos, ele cria, a partir do momento da intervenção divina, uma genealogia da linguagem, e isto ocorre porque, o encontro entre a intenção superior de delimitar a ação humana e o desejo humano de ter o cume da torre e um nome que não permita sua desagregação provoca uma ruptura na linguagem adâmica que os unia. As línguas que dali surgiram continuaram a se fragmentar resultando em novas variações linguísticas.
A heteroglossia, razão de desentendimentos entre povos, de guerras e conflitos, é um dos argumentos que resulta no conceito de nação, é o elo que une e o muro que separa os povos. Esta diversidade lingüística impede um projeto humano a nível global, delimita a intenção humana, no entanto, permite a elaboração de projetos nacionais, entre os quais, os de dominação de uma nação sobre outra por intermédio da língua.
Para uma compreensão melhor do Mito da Babel em sua dimensão histórica, é necessário observar alguns fatos anteriores a ele relatados no livro bíblico de Gênesis, livro este que apresenta os fatos organizados numa narrativa linear.
O capítulo 2, versículo 19 de Gênesis, afirma: “Havendo pois o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda ave dos céus, os trouxe a Adão, para estes ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome.[1]”
Nota-se no fato o desenvolvimento da linguagem pré-babélica quando Adão atribui nomes aos animais. Esta língua adâmica, hemoglóssica, permaneceu dessa forma, sobreviveu ao nascimento de Caim, Abel e Sete; ao primeiro homicídio[2]; Ao dilúvio e a salvação de Noé e seus três filhos: Sem, Cão e Jafé[3]; até que o projeto da torre resulta na confusão das línguas relatada no capítulo 11.
No capítulo 9 de Gênesis, Noé e seus filhos, Sem, Cão e Jafe, recebem de Deus a seguinte ordenança: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra.” Mais a frente, o capítulo 10 afirma que Cão, um dos filhos de Noé, teve quatro filhos, um deles de nome Cuse, foi pai de Ninrode. O versículo 8 afirma que “Ninrode foi poderoso sobre a terra”, o versículo 10 diz que Babel, Ereque, Acade e Calne foi o princípio de seu reino.
É provável que Ninrode, seja o líder dos homens, que no relato da torre, se unem para construí-la.
Existem pequenas diferenças nas formas que o Mito da Babel é apresentado nas diferentes versões da Bíblia, na Bíblia de Jerusalém os homens pretenderam construir uma torre em que “o ápice penetre os céus”, na construção da torre “o tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa” e “Iahweh” confundiu sua língua; Na Bíblia Hebraica, para a construção da torre “foi para eles tijolo por pedra e o barro foi para eles por argamassa”, um outro objetivo dos homens fica evidente nesta versão bíblica quando eles dizem: “edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, e que seu cume chegue aos céus e conseguiremos para nós fama, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra. E o “eterno” desceu e confundiu a língua dos homens; Na versão de João Ferreira de Almeida, “foi-lhes o tijolo por pedra, e o betume por cal”, e o “Senhor” desceu e confundiu a língua dos homens.
Gillo Dorfles, em seu livro Elogio a desarmonia, aponta no capítulo 1, uma versão persa do mito: “segundo a qual a heteroglossia é descrita como obra de Arimam, portanto, de uma entidade demoníaca.[4]” Para Dorfles, o “peso da incomunicabilidade” é sentido quando homens de línguas diferentes se aproximam.
O autor afirma ainda que a hemoglossia foi e ainda é, em tempos contemporâneos, uma das grandes utopias da humanidade, significaria o fim das incompreensões, dos conflitos entre diferentes nações:
Bruegel, Torre de Babel, óleo sobre tela, 1573, divida entre os participantes do projeto.
A utopia, por acaso, consiste no julgar que existia um presente ou futuro topos onde seja possível o retorno à hemoglossia, à edémica e pré-babélica situação perdida pelos nossos pais por culpa da sua ambiciosa escalada a um Paraíso nunca alcançado. [DORFLES, 1986]
A Torre de Babel, como projeto não concluído projeta-se em parte e através da Gestalt torna-se completo e ao mesmo tempo como projeto abandonado torna-se ruína, corroída pelas intempéries, envelhecida com o tempo, contém em si dualidades, vida e morte, inicio e fim, mantendo o potencial utópico de seu término e a possibilidade de sua inevitável destruição.
Para o psicanalista Orlando Hardt a Torre de Babel está em construção dentro de cada pessoa, esta relação entre o Mito e o universo interior do ser também é explorado por Borges em Biblioteca de Babel.
Peixoto encontra a Babel no espaço urbano, e Jean-Marc Besse está mais interessado em como Bruegel explora a paisagem e para esta compreensão o importante ensaio pictórico de Bruegel sobre a Babel não pode ser ignorado, apesar da pintura de Bruegel se impor como uma grande preocupação do pintor com os costumes da grande cidade de Antuérpia.
Entretanto, o grande trunfo do Mito da Babel é o de estar além do tempo e espaço, se reconstruindo em cada contexto, encontrando novos sentidos e se impondo como ponto de partida para discussões que busquem a compreensão da contemporaneidade.
A Torre de Babel, representada por pintores, gravadores, escritores, cineastas, coreógrafos, artistas das mais variadas mídias em épocas distintas, cada um buscando compreender o seu próprio tempo: Bruegel, Doré, que contribuíram com formas que foram aglutinadas ao imaginário coletivo. Para o cineasta Alejandro Gonzales a Babel representa o mundo globalizado, cada vez mais curto e conectado. Além disso, não é difícil reencontrar a Babel no mesmo local onde os historiadores afirmam ter existido em tempos remotos, a Babel localizada na Mesopotâmia estaria hoje no Iraque, onde em decorrência da invasão pelos E.U.A e outras nações aliadas podem se ouvir línguas diferentes e pessoas de diferentes religiões e culturas que transitam naquele espaço geográfico.
Por fim, dando continuidade a este ciclo, o de explorar as possibilidades do Mito da Babel, estes artistas gravadores trazem, cada um, a sua Torre de Babel, para uns a Babel pode abarcar a cidade, para outros é engolida pelo ser que a carrega em seu âmago, para outros a Babel pode se deslocar no espaço, ela está no nicho, no microcosmo ou no macro-cosmo, ela explica o mundo ou o confunde. O fato é que a Babel está aí, incompleta, a espera de um sentido, de novos significados, de novas interpretações, de contribuições. Estes artistas propõem ansiosamente que outros se aproximem e com eles dialoguem sobre tal importante assunto.
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[1] A Biblia Sagrada, edição revista e corrigida, tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969, Gênesis, cap. 2 vers. 19.
[2] Idem, cap. 4
[3] Ibidem, cap. 7 e 8
[4] DORFLES, Gillo. Elogio a desarmonia, Lisboa: Edições 70, 1986
REFERÊNCIAS:
A BÍBLIA SAGRADA, edição revista e corrigida, tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969;
BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra, São Paulo: Perspectiva, 2005;
BÍBLIA DE JERUSALÉM, São Paulo: Paulus Editora, 1981;
BÍBLIA HEBRAICA, São Paulo: Sefer, 2007
BORGES, Jorge L. A biblioteca de Babel, Revista da Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo: 1991;
DORFLES, Gillo. Elogio à desarmonia, Lisboa: Edições 70, 1986;
PEIXOTO, N. B. Paisagens Urbanas, São Paulo: SENAC, 2003
Por Márcio Rogério Ferreira de Souza
2010@ Marcio R. Gotland